quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Banho de Cheiro: Para o Corpo e a Alma



Banho de cheiro: para o corpo e a alma

Por Maria Lucia Montes, escritora e antropóloga
Em todos os tempos, diferentes culturas atribuíram às águas um misterioso poder. Banhar-se é mais que lavar o corpo. É também livrá-lo de impurezas e conferir-lhe poderes mágicos, associados à beleza, ao prazer, à felicidade…
Na micvê das sinagogas ou na pia batismal das igrejas, a água sempre serviu para livrar o corpo e a alma dos perigos da impureza ou até da mancha do pecado original, numa volta ao princípio dos tempos, quando o mundo surgiu das águas por obra do Criador. Já em Pompéia, as águas se associavam à sedução erótica do corpo, retratada nos banhos públicos da cidade soterrada pela erupção do Vesúvio.
O banho sempre envolveu, portanto, algo de sagrado e de magia, sobretudo quando associado ao poder das plantas. Na tradição das religiões afro-brasileiras – do batuque e da jurema, no norte, ou do candomblé e da umbanda, em todo o Brasil – há banhos de ervas que limpam, curam e fortificam; outros que descarregam, afastam perigos, atraem boa sorte.
Ariachés, amacis e abôs servem para lavar o corpo, a casa, os tambores e as pedras sagradas, os fios de contas e os búzios com que se consulta o destino guardado por Ifá. É preceito que se banhe o corpo apenas dos ombros para baixo, enquanto os colares, as pedras e os búzios são mergulhados por dezesseis dias no banho das folhas sagradas.
Poderes mágicos também estão presentes na tradição popular do banho de cheiro do norte do país. Preparado na época de São João, ele também tem uma função de proteção, atraindo boa sorte. Patchuli, pau-de-angola, alfazema, sementes de cumaru, raízes de priprioca, jasmim, sândalo, cedro, baunilha são algumas das plantas da Amazônia que entram na receita do banho de cheiro, o “cheiro cheiroso” do Pará, que tem o poder de afastar o azar e o mau-olhado e trazer felicidade. Para prepará-lo, é preciso macerar todas as plantas e colocá-las a ferver em água até desprender o aroma do líquido esverdeado, que depois deve ser colocado no sereno. Recomenda-se tomar o banho à meia-noite e não enxugar o corpo com toalha.
Se as devoções juninas são cristãs, o banho de cheiro de São João se assemelha aos banhos dos terreiros de batuque e da jurema, mas são certamente indígenas muitas das estórias sobre as plantas que entram na sua preparação. Como a priprioca, por exemplo.
Um mito dos índios Manaos conta que existiu, certa vez, um ser misterioso chamado Piripiri, que exalava um perfume intenso, atraindo todas as jovens da aldeia. Elas o perseguiam em vão, pois se transformava em uma nuvem de fumaça, até que um dia um pajé as aconselhou a usar seus fios de cabelo para amarrar-lhe os pés. Assim, conseguiram segurá-lo e adormeceram a seu lado. Mas, ao despertar, verificaram com tristeza que ele desaparecera, deixando em seu lugar uma planta de raízes finas e maravilhoso perfume. Piripiri, mais uma vez, se tornara nuvem de fumaça e subira ao céu, agora para sempre, transformado nas Três Marias da constelação de Orion. Mas a planta ganhara um nome: era “a casa de Piripiri”, Piripiri-oka, ou priprioca, cujo perfume, desde então, as moças aprenderam a usar para atrair os homens.
Foi também graças à influência indígena que o banho diário se incorporou aos hábitos de higiene do caboclo e de todo o povo brasileiro. E a tradição dos banhos aromáticos não poderia faltar. Hoje, com a industrialização das riquezas naturais da Amazônia, o cheiro cheiroso do Pará é vendido na forma de sabonetes, xampus, colônias, óleos essenciais…
Tudo para tornar o banho um delicioso ritual cotidiano ao alcance de todos. Banho de cheiro, para o corpo e a alma…

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